Foi por volta dos 20 anos que a pesquisadora científica do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan Luciana Cerqueira Leite desenvolveu uma paixão que moldaria os rumos da sua vida dali em diante. Curiosa, ela estudava para o vestibular quando se deparou, pela primeira vez com a imagem de uma molécula de DNA ao folhear as páginas de um livro sobre vírus da coleção de seu pai. O impacto daquela hélice dupla espiralada, que guardava informações tão valiosas em seu interior, foi tão grande que a fez enveredar pelo caminho da química, iniciando assim uma jornada de descobertas no universo da biologia molecular.
Formada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora pelo Instituto Pasteur, na França, Luciana é hoje referência no assunto. Ao longo de sua trajetória profissional, tem empenhado esforços no desenvolvimento de projetos importantes para a saúde pública, como uma vacina de BCG recombinante – uma possível alternativa mais efetiva no combate à tuberculose – e o da Onco rBCG – terapia utilizada no tratamento de câncer de bexiga. Há pouco, recebeu mais um importante reconhecimento: foi nomeada para o Comitê Consultivo Científico da Coalizão para Promoção de Inovações em prol da Preparação para Epidemias (Cepi, na sigla em inglês).
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Lançada durante o Fórum Econômico Mundial de 2017, a iniciativa global tem como objetivo acelerar o desenvolvimento de vacinas e outras medidas biológicas para a contenção de possíveis epidemias e pandemias, tornando tais soluções acessíveis a todos. “Sabia que seria algo disputado, pois se trata de uma entidade bastante valorizada, que tem definido as políticas públicas de saúde. Mas quem não tenta, definitivamente, não ganha”, diz a pesquisadora que, em um primeiro momento, não acreditou ter sido aceita. “Comecei a ler o e-mail e achei que era apenas um agradecimento pela minha tentativa. Só lá pelo final da mensagem vieram as congratulações e caiu a ficha de que havia conseguido”, diverte-se.
Como integrante do Comitê Científico, Luciana deverá oferecer suporte à Cepi, contribuindo para a definição de estratégias que facilitem o desenvolvimento dos projetos prioritários da organização, que inclui medidas de combate à chikungunya, ao Ebola e à Covid-19. Além da brasileira, outros 26 especialistas de diferentes partes do globo completam o quadro consultivo da entidade – entre eles, o vacinologista Rino Rappuoli, considerado por Luciana um de seus mentores.
Fazer vacina “de trás pra frente”
Luciana lembra exatamente do dia em que Rino esteve no Butantan para proferir uma palestra sobre o desenvolvimento de vacinas utilizando ferramentas da biologia molecular. Considerado um dos pais da chamada “vacinologia reversa”, o professor italiano ajudou na consolidação do método que foca na descrição genômica de um microrganismo, e depois na procura por “partes” desse genoma que interajam da melhor maneira possível com o sistema imunológico.
“Em sua apresentação, ele mostrou os dados de uma vacina recombinante que havia desenvolvido. Fiquei encantada com aquilo e tive a certeza de que era exatamente o que queria fazer”, completa. Naquela época, meados dos anos 1990, Luciana estava no Butantan há quase dez anos e, por mais que conduzisse estudos na área de biotecnologia, ainda se sentia distante da amada biologia molecular.
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Um pouco perdida, mas definitivamente bastante decidida em seguir os novos caminhos que lhe foram apresentados, Luciana voltou-se mais uma vez aos livros. “Consegui uma edição do New Generation Vaccines e li inteirinho. É um calhamaço.” Logo na sequência, a pesquisadora também teve contato com os primeiros dados de uma versão recombinante da vacina BCG – uma novíssima linha de pesquisa na qual decidiu apostar.
Desde 1921, o imunizante capaz de proteger contra a tuberculose é feito com bacilos atenuados da Mycobacterium bovis, a bactéria da tuberculose bovina. A descoberta foi resultado de mais de uma década de estudos encabeçados pelos franceses Albert Calmette (1863-1933) e Camille Guèrrin (1872-1961) – o nome BCG vem das iniciais de Bacilo Calmette-Guérrin –, que trabalhavam no Instituto Pasteur da França.
Cerca de 70 anos após essa importante inovação, a pesquisadora brasileira ingressaria na mesma instituição a fim de pesquisar o desenvolvimento de uma versão geneticamente modificada do bacilo. Naquela época, a linha de estudo de BCG recombinante ainda era bastante incipiente em todo o mundo. Além do Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, que tinha desenvolvido a técnica, haviam poucas instituições que se dedicavam ao desenvolvimento do método – uma delas era o próprio Instituto Pasteur, onde Luciana foi aceita e fez o estágio com bolsa de pós-doutorado.
“Minha experiência na França foi interessante e estressante. Eu brinco e digo que deu tudo errado, porque é quando as coisas não saem como queremos que aprendemos de fato”, pondera. A linha de estudo abordada na instituição francesa buscava o desenvolvimento de uma vacina de BCG recombinante contra o HIV e a tuberculose, o que é interessante uma vez que as pessoas soropositivas têm mais chances de desenvolver a doença. Na bancada, as dificuldades eram inúmeras: iam desde fazer o gene do BCG recombinante expressar uma proteína essencial para o sucesso da vacina, até trabalhar com uma molécula de HIV ainda não muito bem caracterizada. “Tentar todas aquelas alternativas envolvia muito trabalho. Aprendi a resolver inúmeros problemas, o que me deu muita experiência”, observa.
Mesmo fora do laboratório, os desafios continuavam. Vivendo em um país estrangeiro e comunicando-se em uma língua diferente da sua, Luciana precisou lidar com todos os percalços e incertezas que envolviam a criação de seu filho Tiago, que na época tinha apenas 2 anos e meio. “Eu queria muito aquela oportunidade e não ia deixar meu filho para trás.” A boa estrutura educacional e de saúde do país europeu também foram decisivas para que a pesquisadora optasse pela França. “Tive que fazer dar certo. Eu trabalhava e cuidava dele, que passava parte do dia muito bem assistido, em uma ótima escola. Hoje vejo que foi uma experiência excelente para nós dois”, diz.
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Comemorar cada conquista
Após um ano na França, Luciana retornou ao Brasil com o título de pós-doutora e um novo projeto na bagagem: o desenvolvimento de uma vacina recombinante neonatal, que além da tuberculose, seria capaz de proteger contra a difteria, a coqueluche e o tétano ainda nas primeiras horas de vida do recém-nascido. O objetivo do produto era evitar a mortalidade em decorrência dessas doenças, visto que os bebês só ficam protegidos contra a difteria, a coqueluche e o tétano após a conclusão do esquema vacinal da pentavalente, aos seis meses de vida.
Foi nessa empreitada que Luciana iniciou uma parceria até hoje bem-sucedida com seu mentor, o professor italiano Rino Rappuoli. “O grupo de pesquisa dele gentilmente nos forneceu os genes ‘editados’ da coqueluche e da difteria.”
Mas a partir de 2014, quando as gestantes brasileiras começaram a receber doses de reforço das vacinas dupla adulto (difteria e tétano) e dTpa (difteria, tétano e coqueluche) – os anticorpos produzidos pela mãe passam para o bebê por meio da placenta e do leite –, o incentivo à vacina neonatal recombinante perdeu forças. Nesse meio tempo, a especialista do Butantan foi procurada por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo que estavam em busca de alternativas para melhorar o tratamento do câncer de bexiga – desde a década de 1970, o BCG tradicional tem sido utilizado no combate à doença.
Luciana sugeriu ao grupo o uso da versão recombinante da molécula, que vinha apresentando uma ótima resposta imune celular nos testes de bancada. Desenvolvido com técnicas de engenharia genética, o bacilo de Calmette-Guèrrin é capaz de expressar uma proteína da toxina pertussis (cepa da coqueluche) também geneticamente detoxificada. Esse recurso funciona como um adjuvante que potencializa, com segurança, os efeitos da terapia com BCG contra o câncer. Testes conduzidos em modelos in vivo mostraram que a recombinante aumentou a sobrevida dos animais tratados, causando redução maior no tumor quando comparada ao BCG utilizado tradicionalmente – a terapia foi batizada de Onco rBCG e patenteada.
“Acabamos de apresentar os resultados preliminares de uma nova vacina contra a tuberculose em um evento da FAPESP [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] na China”, afirma Luciana. Mais potente, o imunizante é feito a partir da edição genética de uma bactéria de E. coli, também disponibilizada pelo grupo de pesquisa de Rappuoli. O microrganismo ajuda a potencializar a resposta do sistema imune contra a doença: enquanto o imunizante convencional reduziu em 90% a infecção nos experimentos feitos em modelos animais, com a BCG recombinante o índice de proteção subiu para 99%.
Curiosamente, Luciana conta quase ter desistido do projeto diante dos constantes resultados negativos. Isso porque, antes de partir para o uso da proteína de E.coli, o grupo trabalhava com uma cepa de coqueluche que simplesmente não apresentava os resultados desejados. “Fato é que na área de desenvolvimento de vacinas em 90% dos casos vamos nadar para morrer na praia. Mas eu sou persistente e otimista.” Como mulher na ciência, por muitas vezes ela também precisou “gritar” um pouquinho mais alto para ser ouvida e, assim, garantir suas conquistas.
Com mais de 140 artigos científicos publicados em revistas de renome e sete tecnologias com pedido de proteção – dentre 99 que o Butantan registrou até hoje –, a pesquisadora do Laboratório do Desenvolvimento de Vacinas diz ter aprendido a vibrar com cada pequena conquista. “No momento, temos diversos produtos seguindo em frente, mas não sabemos se eles vão funcionar na próxima etapa. É por isso que comemoramos cada desafio superado. É dessa forma que vamos.” E a receita para celebrar não costuma falhar: “Happy hour e caipirinha às sextas, não há quem mude isso!”
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